Acionista pode controlar empresa com 4,6% das ações com mudança em Lei das SA; entenda
Principal mudança da Lei 14.195 para o mercado de capitais é a criação das ações com super voto. No exterior, mecanismo é adotado principalmente por fundadores de empresas de tecnologia, como Facebook e Alphabet
A Medida Provisória (MP) 1.045 sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira (26), e convertida na Lei 14.195, altera pontos importantes da Lei das S.A. (sociedades anônimas), e a principal mudança é a permissão para as empresas emitam ações ordinárias, que são aquelas que dão direito a voto, com poder de voto maior que do outras.
Este atributo é conhecido tecnicamente como “voto plural“, mas também pela expressão “super voto“. Na prática, a mudança permite que acionistas com uma participação pequena no capital e no interesse econômico da companhia controlem os rumos da empresa. O uso do mecanismo é comum especialmente em empresas de tecnologia nos Estados Unidos, permitindo que os acionistas fundadores mantenham o controle do negócio mesmo após diversas rodadas de captação de recursos, incluindo a abertura de capital nas bolsas. Esse é o caso, por exemplo, de empresas como Facebook e Alphabet (dona do Google), e também da originalmente brasileira XP, que acabou optando por abrir o capital na Nasdaq, e não na B3, no Brasil, tendo esse como um dos argumentos.
Com as alterações promovidas pela nova lei, uma ação ordinária com voto plural pode ter peso de até 10 votos. Assim, uma empresa que tenha 100% do capital somente com ações ordinárias poderá ter um controlador com 9,1% desses papéis especiais, considerando que cada “super ação ordinária” tenha peso de 10 votos .
Mas como a Lei das S.A. também permite que até metade do capital social seja formado por ações preferenciais, sem direito a voto, a potencial de diferença entre direito econômico (sobre os lucros) e direito de voto poderá ser ainda maior. Em uma companhia com metade das ações ordinárias e metade preferenciais, uma participação de 4,55% de “super ordinárias” poderá garantir o controle acionário (veja abaixo no exemplo). No cenário normal vigente até hoje, em caso de 50% das ações do capital sociais serem PN, é preciso ter 25% do capital mais um voto para controlar a empresa neste caso.
Mas isso vale para qualquer investidor e qualquer companhia aberta? Não é bem assim. “Para quem já tem ação negociando em bolsa isso não muda, essas empresas não podem adotar o voto plural. A regra proíbe migrar a base de ações da companhia aberta”, explica Ricardo Freoa, especialista nas áreas de societário e companhias abertas do Stocche Forbes Advogados.
Mas isso em tese. Apesar de proibir essa mudança de regras no meio da jogo, Freoa avalia que algumas situações da “vida real” e não explicitadas no texto da MP e da lei podem abrir brecha para entendimentos diferentes. Casos de fusões, incorporações e cisões são alguns dos citados por ele.
“É de se esperar que, dada a criatividade dos agentes econômicos, que eles tenham entendimentos que levem ao mesmo resultado prático. E nesses casos vamos ver qual será o entendimento da CVM”, diz Freoa, destacando que pode haver divergências de interpretação sobre a validade do super voto em algumas situações.
Tomás Amadeo, sócio do CSA Advogados e especialista em direito societário, não vê tantas brechas no texto, mas também não descarta a possibilidade de haver tentativas de enquadrar empresas com ações já em negociação no voto plural. “Advogados e auditores são criativos. Veremos ao longo dos próximos anos como será isso”, diz.
O Valor Investe entrou em contato com a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e a B3, a bolsa brasileira. Conforme a lei, caberá à CVM criar regras de transição para adoção dos novos dispositivos e à B3 “dar transparência” aos investidores sobre quais as empresas que tem essas ações com poder diferenciado de voto.
Em nota, a CVM disse que participou ativamente do “trabalho realizado no âmbito da Iniciativa Mercado de Capitais (IMK), tendo contribuído para a formulação de proposta a respeito do voto plural”. Para a autarquia, “as salvaguardas previstas na redação atual, dentre elas a de que companhias já listadas não possam utilizá-lo, refletem uma visão de consenso construída no IMK e que procurou equilibrar os interesses envolvidos, e, portanto, constituem a forma mais adequada para a adoção do voto plural no Brasil.”
A B3 ainda não respondeu ao pedido de posicionamento.
Limites para o super voto
Apesar de ter criado o instrumento, após pressão de agentes de mercado que alegavam que o Brasil vinha perdendo parte das ofertas públicas iniciais (IPOs) pela ausência do instrumento, a lei traz algumas limitações para o uso do voto plural.
Um deles é de prazo de validade. A princípio, esse super poder valerá por até sete anos. E a lei prevê a possibilidade de prorrogação por tempo indefinido, mas desde que aprovado em assembleia geral, sendo que o titular do super voto não pode participar dessa votação. Se o prazo for prorrogado e algum acionista discordar do resultado, tem garantido seu direito de retirada da empresa. Freoa explica que essa saída é como uma opção de venda da ação, que terá como valor a parte representativa do patrimônio liquido contábil da ação.
A “super ação ordinária” também tem caráter personalíssimo, ou seja, não pode ser vendida ou transferida para outra pessoa. “Se houver transferência para um terceiro que não tinha o voto plural, a lei diz que essas ações serão convertidas para voto simples”, explica Freoa.
A ideia é que o super voto tenha uma justificativa, que o detentor seja o fundador da companhia ou alguém cuja visão e conhecimento sobre o negócio sejam considerados essenciais para o sucesso da empresa.
O super voto não vale, contudo, para estatais e sociedades de economia mista, assim como suas subsidiárias e às sociedades controladas direta ou indiretamente pelo poder público.
“Se você cria uma situação de voto plural em estatais, há um desalinhamento [de interesse] se houver uma decisão de desestatização. Como o voto plural é convertido [em voto simples], ele [ente público] sequer vai ter o beneficio econômico nesse processo. Nesse primeiro momento parece prudente excluir o voto plural de estatais até que se entenda como vai funcionar os diversos benefícios dele”, diz Freoa.
Ainda conforme a lei, para adoção do voto plural em companhas S.As. fechadas, a totalidade dos acionistas deve concordar. No caso das S.As abertas, pelo menos metade mais um dos acionistas ordinaristas deve aceitar, e metade dos preferencialistas mais um também – caso haja esse tipo de ação.
Brasil mais atrativo?
A bolsa brasileira vinha perdendo a listagem de empresas que preferiram abrir seu capital nos Estados Unidos para terem essa possibilidade de manter o controle original mesmo com um acionista minoritário. A XP Inc. foi uma dessas companhias que, dentro outros motivos, listou seus papéis nos Estados Unidos para manter Guilherme Benchimol no controle da empresa mesmo sem ter a maioria das ações.
Para Tomás Amadeo, a possibilidade de voto plural é “um grande incentivo às startups, onde o poder do fundador é muito importante para os próximos anos da companhia”.
Amadeo conta ainda que há estudos evidenciando que a adoção do voto plural tem ajudado companhias a atingirem desempenhos melhores. “O fundador tem mais noção do plano de negócio que ele elaborou. A medida que a companhia fica mais madura, é possível equilibrar o voto plural com outros direitos de governança”, explica.
Dessa forma, um caminho mais suave, com a abertura do capital com o controle original da empresa ainda no poder e cedendo aos minoritários a diluição dos votos ao longo dos anos tem demonstrado bons resultados.
Fonte: Valor Investe